sexta-feira, 29 de abril de 2011

SARAU NA CORTE

Helena Marinho - pianoforte / Pedro Couto Soares - flauta / Rui Taveira - voz


I-Tunes:


Helena Marinho - pianoforte
Pedro Couto Soares - flauta
Rui Taveira - voz


Compositores:

José Maria Ribas (1796-1861)

José Francisco Leal (1841-1894)
Joaquim Manuel da Câmara
Sigismond Neukomm (1778-1858)
Domingos Bomtempo (1775-1842)
Gabriel Fernandes da Trindade (1790-1854)
José Maria da Silva


Informação detalhada:


Notas
No início do séc. XIX, uma parte importante da produção musical destinava-se a músicos amadores ou a ser apresentada em salões da aristocracia e da alta burguesia. A vida musical desenvolvida nestes contextos, assim como em concertos públicos, está também ligada à disseminação, por via pedagógica, da prática instrumental. A crescente facilidade na aquisição de instrumentos musicais, nomeadamente o piano na sua versão doméstica de piano de mesa, levou ao incremento da prática musical e ao aumento da publicação de obras instrumentais e vocais destinadas a amadores, com patente influência de géneros eruditos como a ópera italiana.
Relatos de viajantes estrangeiros em Portugal nos finais do séc. XVIII ou início do séc. XIX deixam-nos entrever a existência de uma vida musical variada, repartida por eventos e locais diversos, e acomodando géneros e públicos diferentes. O repertório que hoje convencionalmente se designa como música de salão nasce nestes ambientes sociais de desafogo económico. Embora, a partir de finais do séc. XVIII, esta actividade se revele condicionada pela importância crescente dos teatros de ópera, onde dominava a produção italiana, o repertório instrumental e a canção de câmara, em particular as modinhas, continuaram a contribuir, de forma relevante, para a manutenção de uma vida musical de características e âmbito mais intimistas, paralelamente ao desenvolvimento de repertório de cariz virtuosístico, frequentemente composto pelos próprios intérpretes, e que servia de veículo para a promoção desses mesmos intérpretes, quer em eventos ligados a salões aristocráticos ou burgueses, quer em concertos públicos.
A actividade musical e o desenvolvimento de géneros específicos estão também ligados, no caso português, a determinados eventos históricos, como a deterioração da saúde mental de D. Maria I no final do séc. XVIII e consequentes restrições à vida musical na capital, ou as guerras peninsulares que levaram à permanência da família real no Brasil entre 1807 e 1821 e ao deslocamento para esse território de uma parte significativa da actividade musical e dos seus protagonistas.
A música de salão cultivada neste contexto histórico privilegiava o repertório de câmara e peças instrumentais diversas, nomeadamente obras para piano ou acompanhamento de piano destinadas a intérpretes do sexo feminino em idade casadoira, assim como as modinhas, canções simples sobre textos sentimentais, satíricos ou provocantes. Era patente, tanto em obras vocais como instrumentais, a influência da ópera, género que tinha conquistado a primazia nos gostos dos públicos aristocratas e burgueses.
O diário de William Beckford descreve, em 1787, a modinha como “uma espécie original de música, diferente de quanto tinha ouvido, a mais sedutora, a mais voluptuosa que imaginar se pode, a mais calculada para fazer perder a cabeça dos santos e para inspirar delírios profanos”. Frequentemente apontada como um dos géneros que contribuíram para a génese do fado, a modinha terá resultado da fusão de características do repertório vocal erudito (nomeadamente da ópera) com elementos da música popular brasileira e africana, assumindo assim uma identidade única no panorama da canção de câmara.
A influência literal da ópera está patente na modinha “Nasce Amor da Sympathia”, que reproduz a melodia inicial do dueto “Ah! Con tè” da Norma de Bellini, mas com texto em português de autor anónimo. O carácter sentimental do texto é aliás uma característica proeminente deste repertório, igualmente visível na modinha, também de autor anónimo, “Foi por mim, foi pela sorte”, ou em “A Melancolia”, de Joaquim Manuel da Câmara (poema de Caldas Barbosa). A importância deste último compositor para o género parece ter sido determinante no interesse de Sigismond Neukomm (autor da Fantasia para flauta incluída neste CD) pelas modinhas brasileiras, interesse que o leva de resto a editar em Paris uma colecção de vinte melodias daquele mestiço virtuoso do cavaquinho, providas dum acompanhamento para piano. O repertório de modinhas incluía igualmente o subgénero do lundum, inspirado no ritmo sincopado de uma dança homónima de origem angolana que terá sido proibida devido ao seu carácter lascivo. “Graças aos Ceos”, de Gabriel Fernandes da Trindade, violinista que integrou a Imperial Capela no Brasil entre 1823 a 1846, e “Esta Noite” de João Francisco Leal, major e reputado tenor do Rio de Janeiro, pertencem a este tipo de modinha.
O repertório para piano é particularmente cultivado no início do séc. XIX, ligado a um crescente interesse pelo instrumento, que acaba por tornar obsoleto o cravo, e incentivado pela importação de pianos de mesa, sobretudo de Inglaterra, país onde este tipo de piano foi inventado por Johann Zumpe no início da segunda metade do séc. XVIII, e onde foi implementada uma produção em massa que tornou estes instrumentos relativamente acessíveis.
A figura maior no panorama musical português do início do séc. XIX foi sem dúvida João Domingos Bomtempo (1775-1842), compositor e pianista de carreira internacional e primeiro director do Conservatório de Lisboa. Bomtempo privou com Clementi, que publicou as Variações para piano incluídas neste CD, e foi reconhecido como intérprete e compositor em Paris e Londres, onde residiu. As Variações, publicadas em Inglaterra com o título “An Introduction, Five Variations and Fantasie upon Paisiello´s Favorite Air on Hope Told a Flatt’ring Tale”, foram compostas entre 1814 e 1815, e são baseadas no tema “Nel cor più non mi sento” da ópera La Molinara de Giovanni Paisiello. Este tema foi usado como mote em variações de diversos compositores, entre os quais Beethoven. As Variações de Bomtempo destinavam-se a pianistas amadores ou profissionais de recursos técnicos desenvolvidos, uma característica nem sempre explorada na música de salão, que privilegiava a simplicidade e acessibilidade técnica. A exposição do tema, já bastante ornamentado em relação ao original, é precedida por uma introdução em estilo improvisatório, e seguida por cinco variações que apresentam carácter e recursos técnicos contrastantes. A obra termina com uma fantasia em quatro secções, de tempos diferentes (Largo-Allegretto-Allegro-Plus vite), mas sempre baseadas no tema principal, explorando efeitos de grande virtuosidade pianística.
No século XIX a flauta gozava duma grande popularidade nos meios amadores, sendo, para os cavalheiros, o equivalente social do piano para as senhoras. Não admira por isso que numa das crónicas sobre a vida musical portuguesa, publicadas no jornal alemão Allgemeine Musikalische Zeitung se possa ler em Agosto de 1821: \\\"A flauta é aqui o instrumento que mais se estuda: só entre amadores conheço cerca de doze que tocam muito bem”. As três obras para flauta deste CD são de compositores que por essa altura estavam em Portugal ou no Rio de Janeiro.
José Maria da Silva entrou em 1798, com nove anos de idade, no Seminário Patriarcal de Lisboa, o único estabelecimento de ensino destinado à formação de músicos profissionais que, segundo apreciações da época, ministrava um ensino de boa qualidade, mas demasiado arredado do gosto da música moderna. Após uma estadia como músico da Real Capela, no Rio de Janeiro, onde a corte se refugiara das invasões francesas, regressa a Lisboa onde foi Mestrede capela no mosteiro dos Jerónimos em Belém. Em 1826 publicou sete variações sobre o Hino que D. Pedro IV compusera para o Brasil independente. Como a carreira de José Maria da Silva exemplifica, muitos dos músicos ao serviço da corte estavam também ao serviço da Igreja e o reportório litúrgico estava intimamente ligado ao reportório profano. Não admira portanto que um clérigo compusesse uma sonata para pianoforte e flauta obrigada.
No período clássico, na sonata para instrumento de tecla com acompanhamento de violino ou flauta, o piano ocupava o papel principal, e o violino ou flauta, muitas vezes indicados como opcionais, forneciam o reforço ou acompanhamento. A flauta praticamente não tinha material independente como a comum indicação ad libitum implicava, mas a sua inclusão providenciava um mercado suplementar para a música. A sonoridade do recentemente introduzido pianoforte estava longe da força do piano moderno e ganhava com o reforço dos registos mais fracos. A função de acompanhamento do instrumento melódico era assim meramente textural. Enriquecia a harmonia, enchendo um acorde, especialmente nas notas longas, que rapidamente se extinguiam no pianoforte. Coloria a melodia, dobrando-a, ou sustentava-a harmonicamente, seguindo-a em terceiras ou sextas paralelas.
Na Sonata de José Maria da Silva, de um idioma marcadamente clássico, apesar da presença de muitas destas características, a flauta tem um papel solístico mais assumido, implícito no uso do adjectivo \\\"obrigada\\\". O piano apresenta o material temático, mas quando a flauta o retoma, aquele remete-se a uma função de acompanhamento. O 2º andamento, Cantabile, tem uma melodia de carácter genuinamente português, aparentada à modinha. Modinhas que, na já citada crónica do Allgemeine Zeitung, são descritas como tendo \\\"um aspecto bastante insignificante: no entanto, através do estilo muito próprio e frequentemente apaixonado de interpretação, conseguem ter bastante interesse\\\". Como acima mencionado, estas canções de carácter sentimental, originalmente importadas do Brasil, não são alheias ao nascimento do fado, como se pode aliás ouvir neste andamento. O último andamento é um rondó em que a flauta retoma sempre o material exposto pelo piano. 
Da Sonata composta por um frade, passamos para uma fantasia da autoria de um flautista que, por aventuras amorosas talvez pouco discretas, incorreu no desagrado do clero da cidade do Porto onde vivia e, vendo o seu nome afixado nas portas das igrejas, optou por emigrar para Inglaterra onde fez uma carreira notável. José Maria Ribas (Burgos, 1796 – Porto, 1861), juntamente com o seu irmão mais novo João António, acompanhou o seu pai, mestre de música militar, tocando flautim na banda incorporada na divisão espanhola que Napoleão mandou organizar para fazer parte do seu exército. As mesmas invasões francesas que levaram a corte portuguesa a refugiar-se no Brasil, empregando José Maria da Silva, trouxeram os Ribas ao Porto. Nesta cidade vivia um conceituado flautista, João Parado, com quem José Maria se terá aperfeiçoado na flauta. Enquanto João António se tornou director da orquestra do Teatro S. João e os seus filhos, todos músicos, constituíram a segunda geração dos Ribas que floresceram no Porto, José Maria não teve descendência. Em Londres a partir de 1826, vem a ocupar o lugar de 1º flauta na orquestra do Teatro Real de Covent Garden, onde sucede ao maior flautista inglês da época, Charles Nicholson. De volta a Portugal em 1853, dá vários concertos nos Teatros S. João do Porto e S. Carlos em Lisboa e apresenta-se anualmente no salão da Sociedade Filarmónica na cidade do Porto onde morre a 1 de Julho de 1861. Mais do que como solista, foi no reportório orquestral, onde se encontram algumas das melhores páginas escritas para flauta no século passado, que Ribas adquiriu mais notoriedade. Consta que foi dos primeiros a executar em Londres o famoso solo do Scherzo do Sonho duma Noite de Verão de Mendelssohn. O compositor, que dirigia, ficou tão impressionado com a execução de Ribas no ensaio, que lhe pediu para tocar o solo três vezes de seguida, surpreendido e maravilhado com a execução.
Tal como a maioria dos flautistas da época, Ribas também aplicou o seu engenho na tentativa de melhorar o instrumento que tocava, patenteando uma flauta com algumas inovações, trabalhando em conjunto com o fabricante londrino Scott (pai da jovem com quem regressou a Portugal e que o acompanhou até à morte). Uma das características do seu instrumento, o maior diâmetro dos orifícios para aumentar o volume de som, fora introduzida pelo seu antecessor na orquestra do Teatro Real, o mencionado Nicholson. 
Enquanto a sonata de José Maria da Silva sobreviveu num manuscrito pouco cuidado, a Fantasia de Ribas foi publicada em Londres: Brilliant Fantasia for the Flute in which is introduced the Favorite Spanish Air La Cachucha with an Accompaniment for the Piano Forte Composed and respectfully dedicated to Sir William Ball Bart. A cachucha era uma dança espanhola e o tema em tempo di Valce (sic!) é apresentado depois da habitual introdução. Seguem-se cinco variações de complexidade crescente e um Rondo como conclusão.
Sigismond Neukomm (Salzburgo, 1778 – Paris, 1858) seria um intruso neste programa de música portuguesa, não fosse a sua presença junto da Corte portuguesa do Rio de Janeiro entre 1816 e 1821. Aluno predilecto de Haydn, viajou extensivamente por toda a Europa para assistir às estreias das suas obras ou apresentar-se como organista ou pianista. Radica-se em Paris onde sucede a Dussek no cargo de pianista residente do Príncipe Talleyrand, ministro dos negócios estrangeiros da restaurada monarquia francesa. Em 1816, Neukomm acompanha a comitiva do Duque do Luxemburgo que vai ao Rio de Janeiro com a missão de reatar as relações diplomáticas entre a França e Portugal. Acaba por aí permanecer cinco anos, tornando-se professor do Príncipe D. Pedro e das princesas. 
Da sua produção brasileira constam dezenas de obras para as mais diversas formações, incluindo L’Amoureux, fantasia para pianoforte e flauta, composta em 1819 e dedicada ao ministro plenipotenciário russo junto da Corte e à sua esposa, o Sr. e a Sra. Langsdorff. Esta última seria uma das suas duas alunas que Neukomm menciona numa carta de 1817, em que se queixa do baixo nível de alguns professores de música locais e dos preços irrisórios que cobravam. Apesar de satisfeito com a celebridade local de que desfruta, ironiza que, com o pouco dinheiro que lhe pagam, jamais teria condições para comprar a sua passagem de regresso à Europa.
Na Fantasia, depois de um recitativo, a flauta introduz a melodia da modinha “A Melancolia”, de Joaquim Manuel da Câmara, incluída neste CD. Depois de ornamentar a melodia com um curta exibição de virtuosidade tão ao gosto da música de salão da época, seguem-se um Andantino Grazioso e um vigoroso Allegro. Das três obras para flauta e piano, esta Fantasia mostra ser aquela em que os dois instrumentos são tratados de forma mais equilibrada, com uma parte de piano ambiciosa, e sem virtuosismo gratuito.


Texto de:

Helena Marinho e Pedro Couto Soares 



José Maria Ribas (1796-1861)

1. Fantasia em Lá Maior para flauta e piano 08’52’’



José Francisco Leal (1841-1894)

2. Esta Noite (lundum) 01’38’’



Joaquim Manuel da Câmara

3. A Melancolia (modinha) 01’27’’



Sigismond Neukomm (1778-1858)

4. L’Amoureux, fantasia para flauta e piano 09’48’’



Autor anónimo (tema da autoria de Bellini)

5. Nasce Amor da Sympathia (modinha) 01’55’’



Domingos Bomtempo (1775-1842)

6. Fantasia Op. 6, sobre um tema de Paisiello 09’51’’



Gabriel Fernandes da Trindade (1790-1854)

7. Graças aos Ceos (lundum) 02’14’’



Autor anónimo

8. Foi por Mim, Foi pela Sorte (modinha) 02’16’’



José Maria da Silva

Sonata em Sol Maior para flauta e piano

9. Andante moderato – Allegro 08’18’’
10. Cantabile 02’32’’
11. Rondo – Allegro 04’30’’
Tempo total: 53’30’’


Ref.: NUM 1149



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