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CORAL DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO
Fernando Lopes-Graça
Canções Regionais Portuguesas
Uma Antologia (Im)possível
Coral de Letras da Universidade do Porto
José Luis Borges Coelho, direcção
"A relação do Coral de Letras da Universidade do Porto (CLUP) com a música de Fernando Lopes-Graça (FLG) é tão antiga e constante quanto a existência do próprio Grupo.
Entendeu-se, desde o princípio (1966), que a um grupo coral amador português competia cultivar, em primeiro lugar, a música do seu próprio País. Esse imperativo fundador, de pendor identitário, que assumíamos com tão meridiana clareza, implicava que reservássemos um lugar privilegiado, na programação corrente, à música que carrega, indeléveis, as marcas que nos distinguem e nos afirmam como povo – e essa é, sem dúvida, a música de raiz popular."
José Luís Borges Coelho
Informação detalhada:
Fernando Lopes-Graça
Canções Regionais Portuguesas
Uma Antologia (Im)possível
Coral de Letras da Universidade do Porto
José Luis Borges Coelho, direcção
\"A relação do Coral de Letras da Universidade do Porto (CLUP) com a música de Fernando Lopes-Graça (FLG) é tão antiga e constante quanto a existência do próprio Grupo.
Entendeu-se, desde o princípio (1966), que a um grupo coral amador português competia cultivar, em primeiro lugar, a música do seu próprio País. Esse imperativo fundador, de pendor identitário, que assumíamos com tão meridiana clareza, implicava que reservássemos um lugar privilegiado, na programação corrente, à música que carrega, indeléveis, as marcas que nos distinguem e nos afirmam como povo – e essa é, sem dúvida, a música de raiz popular. De modo que a sua presença se fez constante na nossa actividade. Desde o concerto de estreia. Não precisámos de esperar pelos efeitos devastadores desencadeados pelo fenómeno da globalização sobre a diversidade cultural do Planeta - hoje tão agudamente percepcionados - para definirmos o nosso caminho. Não víamos que competisse a outros - espanhóis, franceses, ingleses... japoneses, polinésios - a assunção dos nossos valores. Simplesmente isso.
Ora, se o panorama, no que à música de raiz popular respeita - pelo influxo, directo ou indirecto do compositor a quem se dedica este registo monográfico - se encontra hoje, em Portugal, incomparavelmente mais rico, a verdade é que, durante as primeiras décadas da vida do CLUP, Fernando Lopes-Graça era, nesse concreto domínio, a grande, praticamente única, referência . Donde resultou aquela espécie de fixação que ciclicamente nos trouxe alimentados, em exclusivo, com a obra do Compositor. Um ano e outro ano. Concerto atrás de concerto. Dentro e fora do País. A tal ponto que não faltava quem suspeitasse que não fazíamos - nem saberíamos fazer - outra coisa...
Mas, por esse Portugal abaixo, outros como nós iam afinando, mais coisa menos coisa, pelo mesmo diapasão.
A explicação para um crédito que se alargava - e é hoje tão unânime - há-de residir no êxito com que o Compositor aplicou a esta parte da sua obra aqueles dois ou três princípios programáticos que um dia enunciou a Francine Benoit, em entrevista que, depois de transformada e desenvolvida, veio a constituir o capítulo Sobre a Canção Popular Portuguesa e o seu Tratamento Erudito, inserto em A Música Portuguesa e os seus Problemas I - um dos volumes das suas Obras Literárias. A descoberta de insuspeitadas virtualidades na nossa canção rústica, determinara-o a olhar por ela e, posto que as ferramentas de que já dispunha se lhe apresentavam perfeitamente adequadas a tal escopo, nem precisaria de se desviar do seu rumo para o levar por diante:
“... Como compositor, vim a concluir que o tratamento artístico da canção popular portuguesa é perfeitamente compatível com todos os recursos e conquistas da moderna técnica e gramática musicais; e direi mesmo que só aplicando-lhe, com o devido discernimento, está bem de ver, esses recursos e conquistas, é que ela se poderá valorizar completamente.”
Esclarecedor, quanto baste.
Recolhe-se aqui um punhado dessas canções, jóias dum tesouro que, guloso, o Compositor abundantemente surripiou, no intuito confesso de colher do seu acto, premeditado e anos a fio repetido, um melhor conhecimento das gentes que o amealharam - como um dia, de viva voz, anunciou, na apresentação dum concerto do seu Coro da Academia de Amadores de Música . Daí haveria de colher também – diremos nós – uma disposição da sua própria linguagem a repercutir, a seu modo, depois de aturada decantação, a das suas raízes. Eis por que, ao devolver ao povo cada uma das canções “roubadas” – ele o disse e o escreveu –, o faz acrescentando-lhe o “juro” da dívida que se lhe representa mais ajustado e que outro não é senão o tal ‘tratamento erudito”, ou “artístico”, aquela espécie de “moldura” – como também lhe chamava agora –, caso a caso desenhada, no fito de melhor realçar os contornos físicos – e mesmo psíquicos – do modelo.
Ora, é justamente esse juro, essa moldura, o que nos faz correr, o que, tão longamente, nos traz na sua órbita. É que a nossa canção rústica, depois que passou pelo crivo do Mestre, por um crivo em cuja urdidura entram, em partes iguais, sensibilidade e domínio técnico e, no miolo, uma assimilação (até aos cromossomas - não resistimos a considerar) da matéria ‘tratada’ (também aquela sabedoria que, para bem de todos nós, o não fez correr a foguetes...), a nossa canção rústica - ia-se escrevendo - depois que o Mestre assim lhe pôs a mão, apanhou-se a trocar o ar livre dos campos de Portugal - aonde agonizava, a golpes do progresso - pelo recolhimento das salas de concerto, com o que cobrava vida nova, feita obra de arte: essa que aí, nesse registo, se deixa, modestamente, entremostrada.
A modéstia, evidentemente, é a da nossa contribuição para o produto final. E o que aqui se traz - ou se ‘entremostra’ - não passa duma parcela ínfima duma safra muito generosa: 26 exemplares tão-só, de um universo de 267, quantos os que acabaram reunidos nas 24 séries de Canções Regionais Portuguesas, e ainda nas 2 Cantata(s) do Natal. (Disperso e em ‘tratamento’ não coincidente, andarão muitos espécimes, consoante pôde concluir o autor destas linhas, numa tarde em que compulsou, um tanto à vol d’oiseau, o espólio de Virgílio Pereira, na bela casa que o ilustre etnólogo e maestro teve em Mancelos e que continua na posse da família. Facto é que, devidamente chanceladas, ficaram vinte e seis colectâneas). E aí está como chegámos ao número de faixas deste registo: tomámos de cada série uma canção, acrescentando ao número assim achado mais uma de cada cantata.
Foi pelo critério utilizado, mas não exclusivamente por ele, que se nos representou (Im)possível a Antologia. A escolha - dificílima, ainda quando limitada ao conjunto restrito duma série - acabou sendo a resultante duma complexa equação em que as nossas predilecções nem sempre foram o factor preponderante. Dito de outro modo: tão rico é esse verdadeiro florilégio legado pelo Compositor para nosso deslumbre, que não se pode afirmar que a nossa Antologia reflicta em absoluto as nossas preferências. Na hora de decidir, impôs-se-nos também, como critério da maior importância, a necessidade de se dar satisfação bastante àquele clássico - e sábio - princípio segundo o qual ao belo convém sobremaneira a variedade.
De modo que, mesmo com o cutelo do tempo a ameaçar abater-se sobre a nossa empresa em plena demanda da impossível perfeição, acabámos por trazer aqui um bom ramalhete daqueles espécimes que se não entregam ‘às boas’, autênticos bojadores que ninguém dobra sem que se disponha denodadamente a arrostar com inopinadas dores.
A primeira canção - Canção da vindima - é também a 1ª da Série I. Por isso a escolhemos: abríamos com a abertura. Quantas preciosidades deixadas para trás, logo aí! Mas a razão, boa ou má, em nada desdiz do interesse evidente da cantiguinha, da vivacidade contagiante duma linha melódica a que nem falta, brevíssimo, um toque de exotismo; como não desdiz da aptidão que mostra para servir com igual eficácia - ou igual distanciamento? - o despeito mordaz, se os amores se desavêm, a exultação do encontro, se se avêm. E que dizer, depois, da mão do Compositor nesta sua nova especialidade, neste arranque para uma demanda que haveria de o perseguir praticamente até ao resto dos seus dias?
Mas não seguimos o mesmo critério quando compulsámos a série XXIVª : não escolhemos a última. Simplesmente porque - admitimos - nunca o quis ser. Como quer que seja, aí, seduziu-nos, irremediavelmente, a canção açoriana - da louçania duma redondilha que uns apartes entre o amoroso e o pícaro interpolam,
O meu amor quer que eu tenha
Ó meu bem
Juízo e capacidade
Olé meu bem... Olé meu bem...
Tenha ele que é mais velho
Ó meu bem
Que eu sou de menor idade
Olé meu bem... Olé meu bem...;
à linha de canto, primeva, à cassa - finíssima! - de que o Compositor a envolveu. Um apuro! De render o mais distraído.
A ordem por que apresentamos as canções não procurou nexos. Não nos consumimos a agregar por blocos temáticos os conteúdos poéticos sobre que se moldam as cantigas. Aliás, alguns revelar-se-iam razoavelmente avessos a arrumações, sempre estanques, como é da sua natureza: sempre alguma coisa sobra sem destino que se lhe dê. E Outros ou Outras é albergue que não calharia escorreitamente neste lugar. Salvou-nos desse desatino a pura obediência ao critério que serviu de base à organização da Antologia: à 12ª faixa corresponde, simplesmente, a canção retirada da XII Série.
Uma referência, por reduzida que fosse, a cada uma das canções, não iria caber nestas notas. Diremos tão-só que, entre aquela primeira e aquela última, mormente a partir de meio da jornada, os temperos se foram fazendo progressivamente mais fortes, bastante mais fortes. Eis por que, depois de fartamente vos (nos) termos servido de sal, de pimenta, de malagueta, optámos por açúcar, para sobremesa: as duas canções de Natal são do mais doce que a cozinha do Mestre alguma vez serviu.
Os textos de certas canções desafiam todas as convenções. Situam-se algures entre as rugosidades graníticas do românico português (do nortenho, sobretudo), os barros populares duma Rosa Ramalho, ou de sua neta Júlia (ou os dum Mistério), e as ousadias modernistas que, em seu tempo, fizeram de Picasso a pedra de escândalo que se sabe, e lhe não hão-de ter vindo, propriamente, do nada. A elipse, o desalinho do tempo verbal, a imprevisível adjectivação, a imagem que desconcerta, a desconcertada concatenação dos passos em trovas que são romanescas (Andorinha gloriosa / tão perfeita como a rosa / Quando Deus aqui nasceu / Toda a terra estremeceu. / Veio o Anjo Gabriel / perguntar pelos pastores: Pastorinhos de bom dia, / aqui está Santa Maria, C’o seu livrinho na mão, / rezando a oração.) tudo isso anda por ali à rédea solta. Não raro a orelha parece estar na testa, ou no queixo; ou nos olham de frente os dois olhos dum rosto que está de lado. Mas tudo bate certo, ao fim. O gosto estético sobrepuja, intocado, os aparentes desmandos da gramática.
Todos esses textos são rigorosamente populares, ainda quando não sejam os originais. Para certos espécimes, FLG colheu no cancioneiro poético popular, ‘letra’ que em seu entender melhor quadraria às qualidades intrínsecas da melodia sub judice. Com toda a probabilidade, valeu à sua intuição um precioso livrinho de Jaime Cortesão - O que o Povo Canta em Portugal, Trovas, Romances, Orações e Selecção Musical, Rio de Janeiro, 1942. Aí se podem encontrar, por exemplo, as desafrontadas trovas deste Canta, camarada, canta , que muitos de nós conheceram acrescentadas de outras, fabulosas, do poeta Aleixo. Como aquela
Vós que lá do vosso império
Prometeis um mundo novo,
Calai-vos, que pode o Povo
Qu’rer um mundo novo a sério!
As melodias são - todas, sem excepção - magníficas.
- “Ó mãe, por que é que ‘o Graça’ estraga as músicas todas?...” - futurava o Compositor que desatassem a perguntar todos os meninos pedrinhos deste País , à semelhança daquele Pedrinho a quem ele ouviu, um dia, disparar a inquietante pergunta. Os ‘estragos’ (por momentos deixamos cair as ‘molduras’...) a que o fino gosto do Mestre sujeitou essas melodias, primeiro, estranham-se; não se lhes percebe, um tempo, o alcance; mas depois entranham-se (que se me releve o lugar comum, irrecusável aqui - haverão de conceder-mo). É como aqueles néctares que, à primeira, nos desmoralizam, mas que, se insistimos e não nos precatamos, podem fazer-se vício. Há, só, que saborear... Sem pressa. Uma e outra vez.
Assim a nossa prestação vo-los traga servidos à temperatura que mais convém.
Fernando Lopes-Graça (1906-1994) é autor duma vastíssima obra musical que abarca praticamente todos os géneros: da música de câmara, nas mais variadas combinações, ao concerto e à sinfonia; da música vocal a-cappella ou com acompanhamento instrumental, solista ou coral, às grandes formações corais sinfónicas (Requiem pelas vítimas do fascismo em Portugal). Na última publicação onde se faz o inventário dessa obra, chega ela ao op. 250. Contudo, basta considerar - para nos socorrermos de exemplo que o leitor já conhece - que todas as 24 séries de Canções Regionais Portuguesas - vêm ali incluídas no op. 39 (embora as séries I e II tenham o seu próprio nº de opus), para se perceber que esse número não é nada revelador da sua verdadeira dimensão.
Da sua música vocal – a que vem aqui chamada - diremos que a molda, magnificamente, a língua que vise servir (ou será o contrário?), merecendo-lhe a portuguesa, que cultivou ao mais alto nível, especialíssimos cuidados: seja, como aqui, no domínio da poética popular (que não se reduz - longe disso - à redondilha maior ou ao verso de pé-quebrado), seja no da melhor poesia, que o estro do Artista se meteu a servir - sobretudo na obra que destinou ao canto e piano - em toda a extensão de um percurso histórico que vai quase em nove séculos.
É também autor duma volumosa obra literária, através da qual o ‘artista intervém’, valendo-se de um domínio da língua que em nada desmerece dos melhores cultores dela.
Grande figura da cultura portuguesa ao longo de quase setenta anos (atravessou o século XX da primeira à última década), foi um activo militante das grandes causas da emancipação da humanidade, o que, por mais de quatro décadas - tantas as que durou o regime derrubado em 25 de Abril de 1974 -, lhe acarretou não poucos nem pequenos dissabores – prisão, desterro, perda dos mais elementares direitos cívicos. A própria actividade docente, de que basicamente vivia, acabou por lhe ser vedada.
Intenta este registo celebrar o Compositor a quem a música e a cultura pátrias tanto devem e surge por ocasião do Centenário da Universidade do Porto, a 22 de Março de 2011.
Patrocina-o a Reitoria da Universidade.\"
José Luís Borges Coelho
1. Canção da vindima
(Beira Baixa)
2. A Senhora d’Aires
(Baixo Alentejo)
3. Já os passarinhos cantam
(Beira Baixa)
4. Romance de Mirandum
(Trás-os-Montes)
5. Canta, camarada, canta
(música da Beira Alta.
Letra do Cancioneiro Popular adaptada)
6. Romance da andorinha gloriosa – Fragmento (Beira Litoral)
7. Quatro laços da dança dos paulitos
(Trás-os-Montes)
8. Não quero que vás à monda
(Alentejo)
9. Romance da menina cativa
(Trás-os-Montes)
10. Senhora do Livramento
(Beira Alta)
11. Menina, se bem me queres
(Douro Litoral)
12. Oh que novas tão alegres
(Beira Baixa)
13. Vai colher a rosa
(Alentejo)
14. Ó meu divino Senhor
(Beira Alta)
15. As sécias
(Beira Baixa)
16. Dormi, menino, dormi
(Ilha de S. Jorge - Açores)
17. A Senhora do Desterro
(Beira Alta)
18. Segadinhas, segadinhas
(Minho)
23. Nossa Senhora da Guia
(Beira Alta)
24. Ó meu bem...
(Ilha dp Faial, Açores)
25. Confusa, perdida
(Natal)
26. O Menino nas palhas
(Natal)
Ref.: NUM 1213
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